Arte e antropologia sempre caminharam em sintonia. O gesto do pesquisador se confunde com o do artista ao se propor a questionar e expressar seu tempo, a apreender o mundo a partir de sua nua presença, lançando-se ao encontro do outro em busca de forma, sentido e inspiração.

O cinema, a fotografia, a literatura, as artes visuais, nesse contexto, sempre me serviram de guia para mapear o comportamento humano, pois permitem refletir o mundo livre de reduções, linearidade ou simplificações.

Por meio da arte pude entender que os melhores aprendizados num processo de pesquisa não se revelam nos fatos, mas na contradição, na tensão entre o inteligível e o que é de domínio do sensível.

Flertar com a arte me abriu caminhos para uma arquitetura de pensamento mais sinestésica e metafórica, uma forma de navegar por entre camadas e contrastes da expressão humana sem me sentir à deriva ou me agarrar com muito afinco às palavras.

A arte me trouxe mais nuances e contornos para olhar para o ordinário e corriqueiro da vida cotidiana desviante das obviedades e salvo da monotonia do que se julga familiar.

A arte me ensinou também que há sempre um silêncio que sustenta o discurso e que é preciso reservar um bom capítulo para as incongruências e incompreensões. Na ânsia por controlar, mensurar, resolver e explicar, perdemos a magia da contemplação.

Buscar encantamento e poesia nas banalidades e contingências do dia a dia me permitiu valorizar e contemplar o que me escapa; entender o não-dito; tocar a ausência e aceitar com generosidade o que se coloca diante de mim, satisfeito com o que me sobra e não aflito com o que me falta.

Aos poucos, fui entendendo que uma boa pesquisa não se restringe a explicar o mundo, mas o encarna em sua inteireza porosa. O crochê no pano de prato sobre o fogão, a textura da parede disfarçando a humidade, a voz que se abaixa em confidência, o pó sobre os objetos a denunciar o tempo... Com o tempo, a paisagem passou a guiar minha investigação.

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Por meio da fotografia, pude reaproximar meu processo de pesquisa da experiência, do sutil das contingências, da aspereza aflitiva de se deixar conduzir ao invés de conduzir. Aos poucos, as metodologias se tornaram contextos; as perguntas viraram pedidos; e as ferramentas cederam espaço para os sentidos.

É preciso educar nossos sentidos para ver o ordinário como extraordinário, o familiar como estranho, o mundano como sagrado, o finito como infinito.
— Novalis

Nesse lugar, a pesquisa exige menos planejamento e mais fruição e, talvez, seja essa a maior dificuldade do mercado. Abrir mão do controle, confiar na experiência e abraçar o inesperado são movimentos fundamentais para fazer com que os projetos de pesquisa deixem de orbitar em torno das inseguranças do mercado e entreguem de fato às pessoas o protagonismo na contação da própria história. Os burilados roteiros que caricaturalmente os pesquisadores carregam por ai sempre dirão mais sobre quem pergunta do que sobre quem responde.

Pressionada pelas urgências, tolhida por orçamentos cada vez mais parcos e envelopada em “entregáveis” objetivos, a pesquisa cultural, no entanto, tem se afastado cada vez mais de sua vocação artística e anímica.

Fala-se tanto do "o espirito do tempo," mas a sensação é que o mercado quer mesmo é exorciza-lo, extirpa-lo de qualquer subjetividade, sutileza e livre manifestação para, assim, conseguir mensura-lo, metrifica-lo, parametriza-lo e consumi-lo.

Perdeu-se o tempo para a poesia, apagou-se o espaço das metáforas. As histórias, anedotas e digressões naturais das vivências vão sendo silenciadas e, com elas, o encontro com o fortuito, criativo, inesperado e inestimável que sempre deram tonalidade a pesquisa de comportamento.

O mercado quer cada vez mais respostas simples, infográficos concisos, listas de insights. Basta-se com o reflexo da realidade e se mostra muitas vezes enfastiado com a reflexão que ela suscita.

Capituladas diante do mantra da eficiência, a pesquisas passaram a operar como uma espécie de suporte técnico nas empresas, necessárias apenas para guiar, apoiar e corroborar planos já traçados e não mais servem de convite ao pensamento critico, filosófico e, por isso, estratégico sobre a realidade.

O comportamento virou métrica; o desejo virou tendência; a cultura virou dado; e o mercado passou a se guiar pelas próprias miragens. Esqueceu-se que as pesquisas culturais, assim como a arte, não são necessária por conta de seu valor utilitário, mas porque nos sensibiliza. Para estar no mundo é ncessessário se deixar atravessar e transbordar por ele.

Na ausência de uma dimensão poética e hipnotizada por tecnologias que simulam a realidade, a pesquisa passou a produzir diagnósticos corretos, porém estéreis; resultados coerentes, porém desabitados. Longe da arte, deixou-se de escutar os silêncios.

Reaproximar a arte das pesquisas culturais não é um retorno ao passado, mas um gesto de sensibilização necessário para que possamos traçar estratégias e caminhos mais duradouros e verdadeiros, capazes de encontrar eco nos afetos.

E, antes que me acusem de cabotinismo, é importante afirmar que resgatar o caráter poético da pesquisa é, acima de tudo, uma forma de oferecer às marcas, ou melhor, às pessoas que trabalham para elas, algum propósito, alguma essência, algo que comove, arrebata, entusiasma e rompe com a apatia e monotonia disfarçada de eficiência, mas que só empobrece a discussão.

É incrível, ao final da apresentação de um Report, ver a gerente de uma marca de esmaltes vir falar dos momentos que passava com sua mãe fazendo as unhas na infancia; ou ouvir a diretora de uma multinacional reconhecer que o trauma que leva as mães a entrarem na categoria de fórmulas infantis precisa ser acolhido e não silenciado, ou presenciar um CEO de uma marca de moda masculina refletindo que seu propósito não é vender roupas ou encurtar a jornada, mas ajudar os homens a se sentirem confortáveis e confiantes na construção do próprio estilo.

A distancia mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta, mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas.
— Lygia Fagundes Telles

Em nenhum desses casos o que mais reverberou dos resultados foram os insights de marca ou produto. Por uns instantes, o negócio ficou de lado e abriu espaço um olhar empático, sensível e generoso.

Ao sensibilizar as pessoas, um projeto de pesquisa de comportamento entrega muito mais do que respostas acionáveis. Ele resgata propósitos, afetos e histórias que não se diluem facilmente no frenesi pela busca por resultados que turvam nossa humanidade e sintetizam nossa experiência.

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