Como o consumo do efêmero apaga o valor anímico dos objetos
Os objetos não são apenas coisas. São extensões do corpo, depósitos de tempo, testemunhas silenciosas da experiência humana. Desde os artefatos pré-históricos até um celular velho esquecido na gaveta, as coisas carregam histórias, sentimentos e significados.
Muitas vezes, o que chamamos de cultura se sustenta menos em ideias abstratas do que na maneira como os sujeitos se relacionam com aquilo que produzem, possuem, tocam, trocam, usam e guardam. O valor de um objeto nunca é puramente funcional. Ele reside em sua capacidade de acumular sentido, de se impregnar de narrativas, de atuar como mediador entre o visível e o invisível, entre o passado vivido, o presente que se deseja compreender e o futuro que se esboça na intenção.
Ao refletir sobre o que acumulamos, empilhamos, encaixotamos e organizamos na paisagem doméstica, é simples inferir que a memória não é apenas um fenômeno interno, psíquico ou mental — ela é, também, material. Os objetos nos organizam, nos estabilizam, nos descrevem. Um vestido herdado, uma carta antiga, um sapato gasto, um brinquedo empoeirado: cada um deles ativa em nós um tipo de lembrança que é sensorial, afetiva, quase onírica em sua capacidade de nos transportar no tempo.
Os objetos que nos rodeiam não apenas expressam nossa identidade, mas a moldam; são coautores das narrativas que construímos sobre nós, uma espécie de agência psíquica com força e vontade próprias que nos interpela e participa da nossa vida. Ou seja, nossos pertences, ao serem investidos de memórias, se elevam do universo do inanimado para se colocarem como operadores de sentido, mediadores de presença, fragmentos tangíveis de um tempo que já não é, mas que insiste em permanecer.
Objetos são, portanto, resistência à fluidez absoluta do fluxo contínuo de tantos pensamentos e sentimentos que nos transpassam. Contudo, mesmo diante do caráter anímico ancorado em sua silenciosa presença, na cultura moderna ocidental capitalista os objetos acabaram rebaixados a status de mercadoria a ser consumida e descartada sem que haja tempo para vínculo ou conexão.
Esvaziado de valor afetivo, cultural, simbólico e mnemônico, e convertido em unidade rasa de valor monetário — intercambiável, mensurável, obsolescente — aquilo que compramos não mais nos preenche ou sacia. Embrulhado em fetiches e desejos, o objeto-mercadoria se desmancha na promessa de juventude, pertencimento, distinção, segurança — promessas que evaporam logo após passarem pelo caixa. O que sobra é o vazio: combustível para um ciclo de substituição que se repete não por necessidade, mas por carência cultivada.
A novidade, a inovação, a disrupção sobre a qual as marcas tanto se debruçam e escaramuçam em busca de assunto, relevância e anunciação, ao invés de provocar transformações simbólicas, produz apenas esquecimento. Não se guarda o que se pode facilmente repor. O consumo, que já foi instrumento de afirmação, expressão e diferenciação simbólica, torna-se hoje um ruído contínuo. A substituição compulsiva de objetos impede a sedimentação da experiência — o que resulta não apenas na perda da memória, mas na impossibilidade de constituir um “eu” que se reconheça no tempo.
Neste dinâmica onde só os números de venda importam, o que está em jogo não é apenas a forma como consumimos, mas nossa própria capacidade de construir uma narrativa autêntica sobre quem somos. Sem objetos que persistem, sem vínculos duradouros, sem mediações simbólicas, a experiência se torna abstrata, desencarnada.
Algumas marcas já compreenderam que sua relevância vai além da simples performance de mercado. Grant McCracken, ao tratar das marcas como produtores culturais, argumenta que elas funcionam como “engrenagens simbólicas” capazes de moldar identidades, práticas e até imaginários coletivos. Ou seja, marcas culturalmente poderosas são aquelas que não apenas capturam tendências, mas criam mitologias, narrativas que respondem a tensões sociais profundas. Quando ignoram esse papel e se limitam a produzir efemeridade, as marcas não apenas se esvaziam de propósito, mas contribuem ativamente para o colapso das estruturas de memória e vínculo.
E se, para além de valor de mercado e volume de vendas, as marcas também se dispusessem a refletir sobre o valor afetivo, cultural, simbólico, mnemônico e identitário daquilo que trazem ao mundo? Será que encontrariam mais propósito e conexão com seus próprios produtos? Será que encontrariam objetivos estratégicos um pouco mais profundos do que ampliar sua fatia do bolso das pessoas? Será que conseguiriam expandir sua visão de mundo para além da própria categoria? Será que teriam mais disposição para resolver questões reais para além de aplacar necessidades e dores que elas mesmas criam?
Não é simples navegar por um mundo em colapso e assumir responsabilidades que vão além do oportunismo retórico de querer vender soluções. Mas parte significativa das saídas possíveis começa com uma reconexão ética e sensível com nosso mundo material — um mundo onde o que se toca também se honra. Onde o vínculo importa mais que a rotatividade. Onde guardar, cuidar e manter não é nostalgia, mas gesto político. Resistir ao descartável é hoje um modo radical de continuar lembrando, de continuar existindo.