A figura mitológica do "consumidor" e o falso protagonismo das marcas

Há tempos bani do meu vocabulário profissional o termo "consumidor." Mesmo estudando comportamento de consumo, prestando consultoria para as mais diversas empresas e escrevendo dezenas de reports de pesquisa sobre a relação das pessoas com produtos, marcas e categorias, nunca me refiro às pessoas que participam dos estudos como "consumidores," embora seja esta a palavra que mais se repete nos briefings que recebo.

Ainda que possa parecer um ato de rebeldia solitário, silencioso, pouco relevante e até contraditório para alguém que estuda consumo, não reduzir as pessoas ao papel de "consumidor" é a fundação do meu trabalho.

Pode parecer inofensivo e corriqueiro se referir às pessoas como consumidoras, afinal, em uma sociedade de consumo, quando não estamos produzindo, estamos naturalmente consumindo. Mas e se essa palavra carregasse em si uma visão profundamente ideológica? E se, ao adotá-la de forma acrítica, estivéssemos reforçando um modelo de relação com o mundo baseado na escassez, na exclusão, na exploração e na destruição?

Para não ficarmos presos em discussões retóricas sobre o assunto, acho que vale recorrermos rapidamente às origens do termo "consumo." Derivado do latim consumere, "consumo" significa originalmente devorar, destruir, consumir por fogo ou doença. Apenas com a ascensão do capitalismo industrial, no século XVIII, o termo foi ressignificado para designar o uso de bens produzidos em massa. Mesmo assim, mantem uma conotação implícita de destruição e desperdício. Afinal, consumir é o ato de usar algo até que ele deixe de existir ou possa ser descartado.

Imaginamos o consumo como o ponto final de uma cadeia: trabalho leva a dinheiro, dinheiro à compra, e a compra à destruição. Mas talvez seja a destruição que dê sentido à cadeia inteira.
— David Graeber

Diante desta definição, chamar alguém de "consumidor" é reduzi-lo a um papel utilitário, solitário, passivo, movido por desejos infinitos e fadado a buscar realização na incorporação — e consequente aniquilação — do objeto desejado. Nesse modelo, o outro não é parceiro em uma relação de troca simbólica, mas obstáculo ou meio para a satisfação individual. O consumo, assim, se torna o ritual cotidiano através do qual o consumidor afirma uma soberania ilusória sobre a própria realidade.

Quando nos referimos a alguém como "consumidor" estamos apagando seu caráter criativo, coletivo e produtivo; e achatando toda a complexidade da experiência humana em uma jornada de compra, na qual as pessoas não são agentes ativos e responsáveis pelas próprias escolhas, mas alguém que precisa ser cercado, estimulado e conduzido a fazer aquilo que se espera em cada etapa, linearmente desenhada para diminuir a chance de escape.

Esse reducionismo tem efeitos concretos também para as marcas que, diante do esvaziamento de códigos, símbolos e ícones culturais nas relações de consumo, se vêem tendo que investir incessantemente em estratégias de branding para criar artificialmente um propósito de marca, trazendo para si o protagonismo desta construção.

Um exemplo emblemático da relação deletéria que as empresas estabelecem com seus consumidores talvez possa ser ilustrada pela prática organizacional inventada pela Sears e popularizada pela Amazon de deixar uma cadeira vazia na sala de reunião simbolizando "o consumidor." Este gesto, tantas vezes exaltado pelos gurus do mercado, teria como propósito lembrar os executivos que "o cliente" está sempre presente e deve ser o centro da tomada de decisão.

Na realidade, do ponto de vista semiótico, representar pessoas com uma cadeira vazia não poderia deixar mais evidente o processo de objetificação enraizado nesta relação. Tal qual uma cadeira, consumidores são objetos cenográficos que precisam ser carregados de um lado para outro, posicionados de acordo com interesses estratégicos e colocados em certa evidência para não serem simplesmente esquecidos ou perdidos da vista.

Negar a palavra "consumidor" é, neste cenário, um gesto simbólico, um convite para que possamos repensar nosso léxico e buscar novos significados e papeis para as pessoas dentro do contexto de mercado.

E se a partir de hoje ninguém mais pudesse usar este termo? Será que conseguiríamos suspender, ao menos por um momento, esta relação binária e cartesiana que opõe marcas e consumidores sobre a qual se estrutura o pensamento econômico vigente e enxergar a vida social como um espaço de produção de cultura, de relações, de sentidos e afetos e não apenas de mercadorias?

Será que esse simples exercício seria capaz de nos fazer parar de perguntar o que as pessoas querem, consomem, precisam, desejam ou demandam... para refletir genuinamente curiosos sobre quem são, o que estão criando, sentindo, pensando, sonhando, imaginando e compartilhando em seu dia-a-dia?

Como lembra Arjun Appadurai, “As mercadorias são coisas com um tipo particular de potencial social — a capacidade de serem trocadas, usadas e recontextualizadas.” Em vez de fixarmos os objetos e as pessoas em funções estáticas, precisamos compreender o modo como ambos circulam e se transformam mutuamente em contextos sociais diversos.

Repensar o consumo é mais do que um gesto crítico — é a oportunidade de evocar uma nova imagem social. É a oportunidade de romper com o utilitarismo das relações mercantis e dar lugar à construção coletiva de mundos possíveis. É afirmar que viver é mais do que consumir: é tecer sentidos, partilhar afetos e criar futuros possíveis no qual todos podemos sentar verdadeiramente à mesa.

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